Os "poemas""para o seu baile"

por Carol Leal

Poesia e recriação

Em uma conversa, uma amiga me disse que o título Poemas para o seu baile era algo como "poemas para a sua viagem". Os poemas convocam à recepção, querem se recriar com o outro. Sua definição está no limite entre a leitura de poesia em voz alta e a música. Está, ainda, no humor de sua destinação ao consumo, nascem "para" – os poemas estão à venda. São feitos para convocar o leitor, espectador, ouvinte à ação: o baile de seu imaginário.

O disco-livro é composto por seis faixas, por imagens, versos e sons, sem textos de orelha ou contracapa. Alguns espaços editoriais abertos, ambiguidades várias, a partir das quais o receptor desse objeto estético pode recriar. A ação, que é evocada desde o título, se estende pelos poemas em si e por todo o seu processo de criação e produção –  que este texto vem percorrer.

Sobre o processo

Voz, escuta e transformação

Poemas para o seu baile nasce de conversas teóricas sobre edição – De um livro-objeto que nunca saiu – De algumas práticas de poesia e performance – De algumas investigações da voz – De reverberações de uma pesquisa acadêmica sobre as traduções intermediais de um poema de João Cabral – De um gravador em casa. 

O processo se inicia quando gravo seis poemas meus e passamos – eu e Gil – a reproduzi-los para músicos e editores próximos. Para alguns deles, é feito o pedido de que produzam sonoridades e visualidades a partir de experiências individuais e conjuntas de audição.

Os músicos Duda Bastos, Pedro Rondon e Vini Machado ouviram as gravações. À medida que eles ouviam, era possível acompanhar a potência de recepção dos poemas pelas imagens que surgiam em nossas conversas – a exemplo de "infância na guerra", "aquele poema dos aliados", para “Ferro e fuga”, primeira faixa do disco –, como também pelo que pedimos que nos falassem dos poemas em sons. As ambiências oníricas, sirenes distorcidas e recursos percussivos que entram como socos ou bombas em “Ferro e Fuga”. As sonoridades incessantes, carregadas e maquínicas que acompanham a repetição dos versos "era a fome das máquinas". 

Um "grito" rasgado emitido de repente pelo sintetizador em “Pitangueiras”, logo após o verso "se debate em novas modalidades de escravidão", pois como disse o Pedro, "escravidão não pode passar batido". Algo que remete a sons de videogames antigos no verso "ou como game over/ and over/ você jogava bolinhas de linguagem a tropeçar cavalos/ com quantos se faz um ou vários". Recursos de eletricidade, interferência. A guitarra que tomba com o verso "e ver você tombar" em “Vestido de linguagem”. 

A suspensão súbita do som no encerramento de “O lugar”, logo após "era dar o fora/ o lugar". A guitarra que rasga os versos "cardumes de facas/ baías de ossos" e se intercala em momentos distintos da repetição cíclica dos versos "e o quando era hoje era quando?".

Os sons que surgiam desses processos, da guitarra de Duda, do sintetizador de Pedro, do baixo de Vini, foram gravados e mixados pelo Gil, que também adicionou a algumas faixas recursos de percussão eletrônica. A voz foi, então, ganhando mais elementos, arranjos, harmonias e ocupando algum lugar que não está na poesia falada, nem na canção. Por isso também os "poemas" são "para o seu baile", porque ainda são poemas, mas são para tocar e depois serem tocados, construídos em seus sentidos por quem ouve e cria junto. Os poemas querem estreitar a relação entre a escrita e a coletividade, querem investigar o que acontece com quem os recebe, querem se transformar com o outro. 

Paralelo ao processo de criação sonora, a editora Alice Bicalho criou o projeto gráfico e as imagens que compõem o disco-livro em um processo de tradução visual a partir de sua audição dos poemas, apenas em voz. O que poderia ser um livro de poemas, a capa de um disco digital ou as traduções visuais de cada faixa foi composto como um híbrido, entre o livro e o encarte de cd. A capa faz referência a uma sanfona, em alusão ao baile. 

Os poemas escritos em versos, encadeados linearmente, passaram a dançar em movimentos espirais (“Pitangueiras”), cíclicos (“O lugar”),

em blocos concretos (“Ferro e fuga”), engrenagens (“Fome das máquinas”), 

espelhos (“Vestido de linguagem”),

paisagens (“Quando”).

Imagens e versos que se misturam. Imagens que se integram ao texto a partir da voz. Texto que é também imagem e explora os espaços da página, gerando movimentos.

Assim, o projeto adota o poema gravado em voz como ponto de partida, trocando a possibilidade de reiteração da escrita pela voz. O leitor, que percorre a materialidade do texto, pelo ouvinte, que é percorrido pelas palavras com entonações, acentuações, ritmos, tons sugeridos. O que se altera no processo de recepção quando passamos da condição de leitor de um texto escrito a ouvinte de um texto gravado em voz? O que se transforma do texto escrito quando o gravamos em voz?

Às vezes a voz passa, uma imagem fica. Às vezes a voz fala e fica uma palavra que nunca existiu no poema, e ela vai se conectando a outras, formando sentidos. E a leitura em voz alta transforma também o original da escrita, corta frases, palavras, repete trechos, cria refrões, reiterações, algum risco de canção.

Todo o projeto Poemas para o seu baile foi construído e só foi possível graças à coletividade e colaboração de pessoas que decidiram usar parte de seu tempo para ouvir a voz, os poemas, um projeto, uma ideia. Além dos nomes já mencionados, contamos ainda com a colaboração de muitos amigos e parceiros na edição e revisão do livro, na masterização do disco, na divulgação, na fotografia, na produção dos lançamentos, no entusiasmo e incentivo, nas reflexões para este texto.

                              Lançamento do disco-livro no Rio de Janeiro


Performance de lançamento em Belo Horizonte durante a Mostra Curva: poesia reunida

O processo de criação e produção de Poemas para o seu baile dá início também à Curva Editorial. A definição da Curva parte, portanto, de pensar modos de editar e, também, editar modos de pensar, colaborar, reunir, realizar possíveis. 

Esses poemas buscam convocar o leitor, o espectador, o ouvinte à ruína e às engrenagens, ao movimento e à imobilidade, à saída do lugar e à busca, à confusão e à revisão dos tempos. Palavras, imagens e sons que deixam o sentidos abertos para as potências da linguagem e da edição. O lugar fora do lugar. Será, esse, a poesia?